por Carlos Leone

«Não há maior tortura que a solidão forçada.»
Sílvio Lima, 1927
(OC: I, 34)

Sílvio Lima (1904-1993) viveu durante uma transformação estrutural, e estruturante, do discurso crítico desenvolvido em Portugal no século XX. Dito isto, os estudos disponíveis sobre Sílvio Lima são escassos. Recentemente a publicação em dois volumes da sua Obra Completa pela Fundação Calouste Gulbenkian, sob direcção do ex-assistente de Sílvio Lima, hoje Professor Catedrático Jubilado, José Ferreira da Silva (doravante OC, seguido da indicação de volume em numeração romana e de página em algarismos árabes), pode vir a ser um elemento decisivo para alterar este estado de coisas. Faremos nestas páginas referência a estudos do nosso conhecimento e, sobre matéria biográfica, indicamos o artigo «Sílvio Lima - História de um Professor Universitário», da autoria de Ferreira da Silva, no qual colhemos numerosas informações (publicado na revista coimbrã Biblos, vol. LV, pp. XXXV-LIII,1979, integrado numa miscelânea em honra de Sílvio Lima). Com efeito, a história de Sílvio Lima confunde-se com a de um dado período da Universidade em Portugal, o que, tendo sido penoso, é hoje revelador.

Sensivelmente a meio da sua vida, em 1944, escreveu Sílvio Lima nas linhas da conclusão daquele que é até hoje o seu título mais conhecido e citado (Ensaio sobre a Essência do Ensaio): «Cada escritor se julga no direito de rotular de ensaios, ou de ensaio, os seus produtos. Como se o ensaio fosse, afinal, a fumarenta retórica, o eruditismo formalista, o historicismo arquivístico, o comentarismo estéril, o barroquismo conceptista e cultista, numa só palavra, o anticriticismo! O facto assume, entre nós, lusos, um aspecto mental inquietante.» (OC: II, 1410).

Jovem estudante, Sílvio Lima cursara brevemente medicina, antes de ingressar e se formar em Filosofia (sempre em Coimbra, na década de 1920); depois, a sua formação posterior à licenciatura foi não só célere mas também «estrangeirada», isto é, decorreu na Suíça, na Bélgica e em França, antes de regressar a Coimbra para obter as insígnias doutorais (em 1929) - já nisto muito sergiano, como o tempo viria a comprovar.

Do primeiro destes dois dados ficou-lhe a convicção inabalável no experimentalismo, que distinguia do empirismo, e na cumulatividade do conhecimento científico, que não excluía a consideração de cesuras e revoluções; do segundo, nunca o abandonou a atitude crítica perante o seu país e o seu tempo, em muito devedora de Sérgio e que, em rigor, fez da sua Obra a mais 'sergiana' das que a Universidade Portuguesa conheceu na primeira metade do século XX.

Em Maio de 1935, foi afastado do Ensino, integrado num contingente de «oposicionistas» contra os quais o recém-institucionalizado Estado Novo (cuja Constituição fora referendada em 1933) moveu o Decreto-Lei nº 25317, para segurança e defesa do Estado. Uma lista de ilustres (foram 33 os «depurados») que incluía, entre outros, Aurélio Quintanilha e Abel Salazar. Depois da depuração seguiu-se um período de anos de incerteza até à reintegração (como tolerado) em 1942. Para compreender o porquê da sua «depuração» há que ter presente três factores: a sua afinidade com activistas do campo da oposição republicana ao regime de Salazar; a sua polémica, iniciada em 1930 com a publicação de Notas Críticas ao livro do Sr. Cardeal Gonçalves Cerejeira «A Igreja e o Pensamento Contemporâneo» (1ª edição 1930, 2ª ed. 1931) livro dedicado a António César Abranches e Vitorino Nemésio, em que criticou Gonçalves Cerejeira (seu antigo Professor e entretanto nomeado Cardeal de Lisboa) a propósito da relação entre fé revelada e razão crítica; e a progressão natural da sua investigação, na forma de concurso para Professor Auxiliar na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra com a dissertação intitulada O Amor Místico (Noção e valor da experiência religiosa), cujo primeiro volume (e único, dos três previstos) foi publicado em 1935 pela Imprensa da Universidade − a qual também não tardaria a ser encerrada.

Após o seu afastamento compulsivo da Universidade, e impedido de leccionar nos restantes níveis de ensino, Sílvio Lima viu-se forçado a vários périplos, uns por intermédio de outros «depurados» (Quintanilha), outros por actividades como bolseiro de investigação científica. Desse período entre 1935 e 1942 (data da sua reintegração em Coimbra por intercessão do então Ministro da Educação Nacional, Mário de Figueiredo, catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra), ficou a maior parte da sua escrita jornalística, sobretudo no Primeiro de Janeiro e no Diário de Lisboa e ainda ensaios diversos sobre temas ligados ao desporto e à educação cívica.

A partir de 1943, e apesar da sua reintegração na Universidade, a actividade de Sílvio Lima conhece um surto, ainda que breve: nesse ano, publica O determinismo, o acaso e a previsão na História; no ano seguinte, o seu título mais citado e mais vezes reeditado, Ensaio sobre a essência do Ensaio; e, entre diversas recensões críticas desses anos sobre autores hoje maiores (como o então «moço» Vitorino Magalhães Godinho) que o revelam atento ao que se fazia em Portugal e no estrangeiro (cf. OC: II, 1543-56), ainda em 1945 é o orador oficial na cerimónia oficial de imposição de insígnias doutorais a Delfim Santos, Álvaro Costa Pimpão e Rodrigo de Sá Nogueira («Três Doutoramentos», OC: II, 1441-1421). Estes trabalhos, bem como as recensões que continuará a fazer, espaçadas mas regulares até à década de 1960, quando se reforma, e como algumas outras intervenções em Portugal e no estrangeiro (conferências, capítulos de livros, etc.), são tudo o que conseguiu fazer depois de ser reintegrado. Não têm a extensão nem a complexidade da projectada continuação de O Amor Místico, mas nunca renegam o passado do seu autor.

Depois de se aposentar por motivos de saúde em 1961, a sua situação só se alterou em 1975 quando foi reintegrado como professor catedrático com diuturnidade, aposentado. Mas, até nesse momento de reparação, como nota Ferreira da Silva, a Universidade «perde uma oportunidade para homenagear o professor e o intelectual que Sílvio Lima foi.» (op. cit., p. XLI). Morreu em 1993, reconhecido ainda em vida, mesmo que de forma discreta, por aqueles que cuidam da cultura portuguesa contemporânea, desde Barahona Fernandes a Eduardo Lourenço, de Orlando Vitorino a José Esteves Pereira e de António Braz Teixeira a Eugénio Lisboa.


Bibliografia Activa:

Sílvio Lima, Obra Completa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2 vols., Lisboa, 2002

Adolfo Coelho
Alexandre Herculano
Almeida Garrett
Antero de Quental
António Nobre
Basílio Teles
Eça de Queirós
Gomes Leal
Jaime Batalha Reis
Lopes de Mendonça
Moniz Barreto
Oliveira Martins
Pinheiro Chagas
Rafael Bordalo Pinheiro
Rebello da Silva
Teófilo Braga
Abel Salazar
Adérito Sedas Nunes
Adolfo Casais Monteiro
Agostinho da Silva
Alexandre O'Neill
António Gedeão
Aquilino Ribeiro
Augusto Abelaira
Bento de Jesus Caraça
Bernardo Marques
Borges de Macedo
Carlos Ramos
David Mourão-Ferreira
Eugénio de Andrade
Fernando Gil
Fernando Lopes-Graça
Fernando Pessoa
Fidelino de Figueiredo
Florbela Espanca
Guilhermina Suggia
Helena Vaz da Silva
Hernâni Cidade
Irene Lisboa
Jacinto do Prado Coelho
Jaime Cortesão
João Gaspar Simões
Joaquim de Carvalho
Jorge de Sena
Jorge Peixinho
José Augusto Seabra
José Cardoso Pires
José Gomes Ferreira
José Rodrigues Miguéis
Leonardo Coimbra
Lindley Cintra
Luís Albuquerque
Luís de Freitas Branco
Manuel Antunes
Manuel Viegas Guerreiro
Maria Archer
Maria de Lourdes Belchior
Maria Lamas
Mário Botas
Mário Eloy
Mário Sottomayor Cardia
Miguel Torga
Orlando Ribeiro
Paulo Quintela
Raul Brandão
Raul Proença
Sílvio Lima
Sophia de Mello Breyner Andresen
Teixeira de Pascoaes
Vergílio Ferreira
Viana da Mota
Vieira da Silva
Vieira de Almeida
Vitorino Magalhães Godinho

© Instituto Camões, 2003-2006