Bento de Jesus Caraça (Vila Viçosa, 1901 Lisboa, 1948)
Bento de Jesus Caraça, matemático e ensaísta, é ainda hoje uma das figuras de referência da Matemática em Portugal e figura cultural da Esquerda, sobretudo mais afecta ao Partido Comunista Português (um pouco como sucede com Rui Luís Gomes). Apesar de a sua morte ter sido prematura e de não ter tido oportunidade, por perseguição política, de exercer na Universidade todo o seu trabalho, a sua capacidade de intervenção, cultural e ideológica, sobrelevou esses problemas e garantiu-lhe uma posteridade para além do mundo universitário e do memorialismo anti-fascista. Tanto a sua Obra como a sua vida, pessoal e profissional, espelham a realidade portuguesa simultaneamente no que esta tinha de mais grave (a ditadura e seus efeitos) e de mais premente (a necessidade de romper com os paroquialismos).
Oriundo de um meio social modesto, no Alentejo, a sua vocação para a matemática cedo se revelou e sempre manteve uma feição pedagógica e cívica intensa. A sua obra mais emblemática talvez seja A Cultura Integral do Individuo, de 1934, embora não seja a sua primeira publicação; de carácter ensaístico ela persiste ainda hoje como um trabalho de reflexão sobre a ciência na vida dos indivíduos, da cultura, do melhor que se fez em Portugal. Nesta produção inicial, forçoso será igualmente recordar Galileu Galilei, Valor Científico e Valor Moral da sua Obra (1933), um título revelador do espírito do autor, atendendo sobretudo ao ano de publicação. Interpolação e Integração Numérica, Lições de Álgebra e Análise (que lhe valeu elogios generalizados dos seus colegas) e Cálculo Vectorial (respectivamente de 1933, 1935 e 1937) granjearam-lhe respeito intelectual e reconhecimento como excepcional divulgador de conhecimentos científicos especializados e actuais. Em 1938 funda e dirige o Centro de Estudos de Matemáticas Aplicadas à Economia, introduzindo em Portugal os métodos da econometria. A sua obra mais relevante, contudo, data de 1941, Conceitos Fundamentais de Matemática. Nesta obra encontramos a articulação filosófica da especialização matemática do autor com o seu espírito cívico. Apesar de se tratar de um livro publicado em três partes (dedicadas a Números, Funções e Continuidade) com uma história atribulada, a sua influência foi imensa: as duas primeiras partes surgiram em vida do autor, separados, na colecção Biblioteca Cosmos, por si dirigida e a que voltaremos mais adiante; mas só após a sua morte surge a terceira parte, reunida com as duas anteriores, em 1961.
Desde a década de 1930, também devido à sua intensa colaboração com publicações próximas do PCP (Vértice, Diabo, mesmo a Seara Nova), era um dos intelectuais académicos portugueses mais conhecidos do público. Muito activo politicamente, fez parte do MUNAF (Movimento de Unidade Nacional Anti-Fascista, 1944) e «apadrinha» (com Azevedo Gomes) o surgimento do MUD (Movimento de Unidade Democrática, 1945). Toda esta combinação de espírito científico, empenho pedagógico e actividade oposicionista suscitaram naturalmente uma polémica com António Sérgio, que competia com todos os demais e, em particular, com a esquerda comunista pelo primado do apostolado entre os jovens da ciência e da democracia. Assim, em 1945 e 1946, nas páginas da Vértice, a leitura duvidosa de Platão por Sérgio e a exposição rigorosa de matemática por Caraça acabam por ser o menos relevante; trata-se sobretudo de um confronto que vinha já da década anterior, entre o espírito seareiro original, idealista, e a estratégia de influência comunista, materialista, de oposição ao regime. Apesar de o seu interesse por arte ter originado também reflexão no território em que habitualmente se pensa quando se fala de neo-realismo (a literatura, por oposição ao movimento da revista coimbrã Presença), como sucede em A Arte e a Cultura Popular (1936), certo é que a polémica de Caraça e Sérgio, já após a II Guerra Mundial, vem como que confirmar a verdadeira oposição interna aos círculos oposicionistas portugueses, entre os demoliberais como Sérgio e os revolucionários próximos do PCP designados usualmente «neo-realistas» por força da censura à defesa do comunismo.
Contudo, o espírito de Caraça não se encontrava dominado pelo sectarismo, como a sua criação mais lembrada, a Biblioteca Cosmos, comprova. Fundada em 1941, numa editora, Cosmos, que apostava forte na divulgação da ciência mais avançada (incluindo as ciências sociais e humanas, através das iniciativas de Vitorino Magalhães Godinho), a colecção dirigida por Bento de Jesus Caraça incluía diversas séries temáticas: «Ciência e Técnicas», «Artes e Ideias», «Filosofia e Religiões», «Povos e Civilizações», «Biografias», «Epopeias Humanas», «Problemas do nosso Tempo». Como se vê, era de facto toda uma biblioteca, orientada para uma cultura realmente integral. Fortemente marcada pela divulgação científica rigorosa, a partir daí sendo a referência no panorama editorial português nessa área, a sua influência imediata e mesmo posterior foi imensa, tendo ainda o mérito suplementar de não se limitar a traduzir obras adquiridas (o que também fez, naturalmente) mas de encomendar a autores portugueses, geralmente universitários, trabalhos originais adequados à colecção.
Como não poderia deixar de ser, tamanha proeminência prejudicou a sua vida profissional. Preso pela PIDE por duas vezes, acabou em 1946 por ser demitido da sua cátedra na Universidade Técnica de Lisboa. Permaneceu um ídolo entre os alunos do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (que, segundo a lenda, reduziam a sigla da instituição a «Isto Sem Caraça Era Fácil», dado a sua exigência como professor) e esteve ligado à origem da então inovadora Revista de Economia, cujo primeiro número, com colaboração sua, foi publicado em 1946, pouco tempo antes da sua morte. O seu funeral deu origem a um cortejo fúnebre explicitamente anti-salazarista que ficou para a História. Hoje, com a publicação da sua Obra Integral em curso (muito lento, mas cuidado, a cargo de António Pedro Pita e de alguns outros investigadores, como Natália Bebiano), a sua memória está um pouco esquecida, apesar de o seu nome se encontrar repetidamente na toponímia das regiões do país, sobretudo a sul, nas autarquias comunistas.