Espaços

Teatro Nacional de São João

(Praça da Batalha, 4000-102 Porto, Portugal)

O Teatro Nacional de São João tem uma história longa e atribulada enquanto espaço arquitetónico e enquanto espaço de teatro e de sociabilização, a partir da qual se pode sentir a pulsação da sociedade portuense ao longo dos séculos XIX, XX e XXI.

  Teatro Nacional S. João
  Teatro Nacional S. João (novo), s.d., postal ilustrado [Arquivo Histórico Municipal do Porto].

Inaugurado em 1798, o teatro passou por administrações municipais e gestões privadas, apresentando espetáculos de toda a natureza – de teatro declamado a ópera, passando por concertos, bailes, variedades – que apelaram a um público também ele variado (embora seja a burguesia que a ele mais se associa).

Estabeleceu-se como o principal teatro do Porto, até que, em 1908, um incêndio o destruiu quase por completo. A sua continuidade provou ser um assunto delicado e demorado, mas a reconstrução ganhou forma e o novo teatro abriu as portas em 1920. Durante parte do século XX o cinema tomou conta do espaço mas, em 1992, o Estado português adquiriu o edifício e redirecionou-o para o teatro, revitalizando o espaço e, sobretudo, a instituição – que se tornou uma das maiores promotoras das artes performativas do país.

Foi por proposta de Francisco d’Almada Mendonça que nasceu, em 1796, a ideia de construção de um teatro “digno” na cidade do Porto, que cumprisse o novo modelo de espaço conceituado para as artes e para a sociabilização que era concretizado, em Lisboa, pelo então recente Teatro de S. Carlos.

A escolha do local antecipou, estrategicamente, questões tanto urbanísticas como económicas, e a decisão recaiu sobre um terreno junto à Praça da Batalha, onde estava situada a muralha de fortificação. Embora na altura não fosse particularmente central, esta localização garantia boa acessibilidade tanto na rede urbana da época, como nas previsões de crescimento da cidade e, adicionalmente, assegurava algumas facilidades na aquisição (os terrenos da muralha, públicos, eram cedidos a quem garantisse construção breve). O projeto começou então a delinear-se naquele terreno fora do comum, entre a Viela do Captivo e a Viela dos Entrevados, junto à Real Casa Pia e ao Hospital da Irmandade da Caridade. O desenho da construção adiantava um edifício estreito para o seu comprimento, que procurava otimizar as vantagens económicas de ser implantado na muralha (a tomada de mais terreno público e da pedra nele contida) independentemente de lógicas arquitetónicas ou urbanísticas.

A formação de uma sociedade de ações, constituída sobretudo por burgueses portuenses, tornou a obra possível e, com desenho do italiano Vicente Mazzoneschi (que se encontrava em Lisboa como cenógrafo do Teatro S. Carlos), nasceu em 1798 o Real Theatro de S. João, em homenagem ao Príncipe Regente. A inauguração foi feita a 13 de maio, dia do seu aniversário, e os jornais referem “hum Elogio em Musica, dedicado a S.A.R., e huma Comedia intitulada A Vivandeira” (Gazeta de Lisboa, 01-06-1798: 4).

O edifício seguia o modelo italiano e, embora o exterior fosse bastante mais sóbrio do que o previsto no projeto – segundo algumas opiniões “a fachada era pessima” (SOUSA BASTOS 1908: 367) –, o interior era alvo de elogios, sendo realçada a beleza da sua decoração – o Archivo Popular indicava não ser esta inferior à do Teatro de S. Carlos “no gosto e na riqueza das ornamentações” e o Archivo Pittoresco mencionava o salão ornamentado “com singela elegância”, que “sem ser rico acha-se bem decorado e guarnecido” (CARNEIRO 2010: 50). No piso térreo situavam-se a entrada, as bilheteiras e os bengaleiros, uma “casa de devertimentos e recreios” e uma “loja de bebidas”, assim como todos os corredores de acesso à sala e ao exterior. Esta entrada não se considerava propriamente um átrio, facto notado e corrigido nas remodelações de 1888. O primeiro piso era constituído pela galeria nobre, a tribuna real e o salão de concertos. O segundo piso era ocupado principalmente pelos espaços laterais do salão (este tinha duplo pé direito) e, provavelmente, escritórios dos empresários e arquivos, enquanto o terceiro piso era inteiramente dedicado à pintura dos cenários. A sala de espetáculos, com uma lotação de cerca de 1200 lugares, tinha, além da plateia, frisas e três ordens de camarotes, marcadas pela tribuna real ao centro. Esta e a sala que lhe servia de anexo eram os espaços onde a decoração era mais cuidada e profusa, apesar de a família real raramente ali marcar presença – as ocasiões solenes, que o Rei celebrava no Teatro de S. Carlos, eram marcadas no Teatro de S. João pela colocação de um retrato do Rei na tribuna real, acompanhada do hino e de todos os protocolos. Possivelmente relacionada com as especificidades da área de construção estava a questão da acústica da sala de espetáculos. Sendo elogiada a sua aptidão para ópera e concertos, são vários os testemunhos que a relataram totalmente inadequada para o teatro declamado: mesmo que os atores gritassem, era difícil acompanhar o espetáculo a partir do fundo da sala, o que pode explicar a ênfase dada à ópera na programação das temporadas, pelo menos até às remodelações de 1866, em que esse problema foi considerado.

Mas o facto é que a ópera foi a principal atividade do Real Theatro de S. João, programando sobretudo companhias estrangeiras. Os cantores eram maioritariamente italianos, mas destacaram-se nos palcos do S. João portugueses como Eduardo Ribas e os irmãos Andrade. Outros percalços levariam ao encerramento do teatro por falta de qualidade dos espetáculos apresentados, o que aconteceu repetidamente com a temporada lírica da companhia Paccini/Chiaramonte, mas que não abalaram o estatuto deste teatro na sociedade portuense. Enquanto a ópera apelava a um público mais erudito, o teatro declamado era acessível a um público mais alargado, o que melhorou consideravelmente com os aperfeiçoamentos acústicos da sala.

  Teatro São João
  Teatro Nacional S. João (antigo), s.d., postal ilustrado.

Foram inúmeras as remodelações de que o edifício foi alvo, tanto para melhoramentos estéticos como para modificações funcionais. São exemplo disso as obras de 1835, após os bombardeamentos das Guerras Liberais; em 1838, a colocação de candeeiros de azeite e casas-de-banho; e em 1888, pela mão do Eng. Araújo e Silva, a abertura do átrio e melhoramentos na segurança (motivados pela tragédia do Teatro Baquet). Estas preocupações de segurança não conseguiram, contudo, evitar o grande incêndio de 1908. Na noite de 11 para 12 de abril, apesar das frequentes fiscalizações que nada haviam apontado, o teatro foi quase totalmente destruído por um incêndio cujas causas nunca foi possível apurar em definitivo.

O processo de reconstrução foi demorado e delicado: além de as decisões iniciais se terem arrastado, sobretudo no que toca às pessoas e entidades envolvidas no projeto, também as discussões acerca do local e das possibilidades de reconstrução foram sensíveis. Mas apesar das limitações do terreno, o trauma da perda do edifício original impedia que o projeto fosse levado para outro sítio e a decisão assentou de novo no mesmo local – o teatro de S. João havia criado uma identidade e raízes naquele terreno na Batalha. Foi aberto concurso de projetos, com requisitos específicos quanto a área de construção, segurança, decoração e, obviamente, limite de custos. Foram necessários dois concursos para que surgisse o projeto adequado, da autoria de Marques da Silva, aprovado pela Câmara em abril de 1910. As obras também sofreram grandes atrasos (relacionados com financiamentos, a dificuldade de obter materiais durante a Primeira Guerra Mundial e a instabilidade política da Primeira República) e o novo S. João só abriu as portas a 7 de março de 1920, quase doze anos após o incêndio.

O novo edifício combinava a identidade do original com alguns traços do modelo de teatros franceses, o que o tornava popular. Um vestíbulo com as bilheteiras precedia o átrio solene, do qual partiam escadarias que o ligavam a todos os espaços. Mas o verdadeiro núcleo deste teatro era o avant-foyer, de pé direito duplo, que constituía a zona de sociabilidade por excelência. Havia ainda um restaurante, um fumoir e, pela primeira vez em Portugal, instalações sanitárias pensadas estruturalmente com o edifício. A sala de espetáculos, já sem tribuna real, tinha uma decoração abundante que, inovando nalguns elementos, integrava motivos da decoração do primeiro teatro, numa reminiscência que pretendia reforçar a continuidade e ligação de ambos.

Só em 1995 voltaram a fazer-se grandes remodelações no edifício, desta vez já como património público – foi adquirido pelo Estado português em 1992, ano em que adotou o nome Teatro Nacional de S. João e se estabeleceu como instituição pública. As obras de 1995 contemplaram sobretudo o restauro das zonas do público, a modernização das instalações técnicas e a transformação do foyer na Sala Experimental. Como entidade, o TNSJ agrega e é responsável pela programação do TeCA – Teatro Carlos Alberto e do Mosteiro de São Bento da Vitória.

 

Bibliografia

CARNEIRO, Luís Soares (2003). Teatros portugueses de raíz italiana. Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (texto policopiado).

___ (2010). A estranheza da Estípite – Marques da Silva e o(s) Teatro(s) de S. João. Porto: Fundação Instituto José Marques da Silva.

___ (2012). “Vestígios, Permanências e Continuidades” in Sinais de Cena, nº 16. Lisboa: APCT/CET, pp. 119-124.

GRAÇA, Manuela Carmona (1995). Actividades artísticas do Real Theatro de S. João (1798-1908): I. A ópera, separata da Revista Museu, IV série, nº4. Porto: Revista Museu.

___ (1996). Actividades artísticas do Real Theatro de S. João (1798-1908): II. O Teatro, a Música, Diversos, separata da Revista Museu, IV série, nº5. Porto: Revista Museu.

SOUSA BASTOS, António (1908). Diccionário de Theatro Portuguez. Lisboa: Imp. Libanio da Silva (há uma edição fac-similada de 1994. Coimbra: Minerva). 

 

Consultar a ficha de espaço na CETbase:

http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/reports/client/Report.htm?ObjType=Espaco&ObjId=38

Consultar imagens no OPSIS:

http://opsis.fl.ul.pt/

 

Joana d’Eça Leal/Centro de Estudos de Teatro