Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Álvaro Gomes

Teólogo e professor, natural de Évora, foi lente de Teologia nas universidades de Paris, Salamanca e Coimbra, e ainda confessor de D. João III. Álvaro Gomes deixou-nos essencialmente uma obra de teólogo e é em função dos princípios do catolicismo tridentino que aborda temáticas de interesse eminentemente filosófico. Estão neste caso, por ordem cronológica, as suas obras Comentário ou Censuras ao Registo da Sacrossanta Faculdade de Teologia de Paris (1542), a Apologia (1543) e o Tratado da Perfeição da Alma (1550), este último de relevante interesse para o estudo da repercussão do platonismo no renascimento português.

No entanto, se é possível falar a presença do platonismo no seu pensamento, trata-se menos de uma atitude seguidista em relação aos textos assimilados do que de uma concordância estabelecida na base de uma atitude prévia.

Começando por analisar a sua primeira obra de vulto, o Comentário ou Censuras..., obra de combate contra as heresias da sua época, nem por isso deixa de apresentar alguns temas que aqui importa destacar, nomeadamente a questão sempre candente da origem do poder. Neste âmbito procura contrariar a tese de Lutero, que defendia o direito de cada indivíduo ao sacerdócio, desde que para tanto houvesse consentimento da comunidade, bem como a tese dos albigenses, para quem esse direito era garantido desde que condicionado ao uso de sandálias, como os apóstolos.

Álvaro Gomes exclui e contraria todas as teses que apontem para a mediação, consentimento ou condicionalismos supervenientes, defendendo a ideia da transmissão imediata do poder de Deus para a pessoa por Ele escolhida. Logo, conclui-se que o poder, neste caso o espiritual, estava rigorosamente circunscrito ao seu legítimo detentor, o Papa, enquanto cabeça e suprema autoridade da Igreja.

Outro tema de não menor importância que na época opunha o catolicismo ao protestantismo e sobre o qual também se debruça é o da justificação pela fé, defendido por Lutero, de que decorria a doutrina calvinista da predestinação. A este respeito o teólogo português afirma com insistência a indissociabilidade entre o acreditar e o agir, sublinhando a importância das obras na salvação individual. Também o problema da imortalidade da alma surge aqui abordado, a fim de contrariar tanto a doutrina traducionista de Tertuliano, como a identificação Alma/Anjo, defendida pelos albigenses. A alma, para A.G. é «espírito de vida» e nem se transforma em anjo nem é anjo, permanecendo idêntica a si própria após a morte do corpo, para a eternidade.

Será precisamente este o tema principal do Tratado da Perfeição da Alma, devendo sublinhar-se que a questão da imortalidade da alma não era pacífica no renascimento europeu, tendo em vista a influência da escola peripatética, dividida entre averroístas e alexandrinos.

O Tratado divide-se em três partes. A primeira é dedicada à análise da origem e natureza da alma, «substância sem corpo, racional e imortal, de nenhuma cousa material criada, atribuída ao corpo para seu regimento»; do modo como foi criada; do modo pelo qual «vem ao corpo»; da sua localização no corpo,defendendo a sua presença equitativa por todo o corpo contra a opinião dos que a sediavam ora no coração, ora no cérebro, e termina com um capítulo em que contraria os expositores hebraicos, para os quais durante o sono a alma abandona o corpo para conversar com os espíritos, defendendo, pelo contrário, a tese da sua permanente presença e actividade durante o sono.

Na segunda parte começa por expor a tese dos que negam a imortalidade da alma, discutindo o seu valor, para apresentar de seguida as teses favoráveis, muitas delas retiradas do Fédon de Platão.

Finalmente, na última parte, apresenta-se sobretudo como um moralista, ao abordar o problema do prémio das almas, e ao expor a clássica doutrina das quatro virtudes cardinais para combater os perigos que obstam a que a alma possa neste mundo «viver limpamente».

Já na Apologia, escrita sete anos antes do Tratado, assume-se essencialmente como teólogo, dedicando-se, entre outros temas, à análise do valor probatório do milagre e da profecia em relação à divindade de Cristo. A tese central que motiva o conjunto da obra é a de que as profecias do Antigo Testamento, por si sós e sem o milagre «não provam eficazmente que este homem, nascido da Virgem Maria, era Deus e o Messias».

Obras
Comentário ou Censuras ao Registo da Sacrossanta Faculdade de Teologia de Paris (1542).Nova edição com estudo e notas de Orlando Romano, Lisboa, 1966; Apologia (1543). Nova edição com estudo de Artur Moreira de Sá e de Miguel Augusto Rodrigues, Lisboa, 1983; Tratado da Perfeição da Alma (1550). Nova edição com estudo de Artur Moreira de Sá, Coimbra, 1947; De conjugio regis angliae cum reclita fratris sui (1551); Regista-se ainda a existência de duas cartas, uma a Jerónimo Cardoso, incluída no volume das Epístolas latinas deste autor, e outra a Nicolau Sendero, incluída no Tractatus pro editione vulgata de João Mariano.

Bibliografia
Luís de Matos, Les Portugais à l'Université de Paris, entre 1500 et 1550, Paris, 1950; José Sebastião da Silva Dias, Correntes de Sentimento Religioso em Portugal, séculos XVI a XVIII, Coimbra, 1960; Id., A Política Cultural de D. João III, vol. I, Coimbra, 1969; J. Veríssimo Serrão, Portugueses no Estudo de Salamanca I, Lisboa, 1962; Artur Moreira de Sá, «Álvaro Gomes e o ensino da teologia no século XVI» in Revista Portuguesa de Filosofia, Actas do Primeiro Congresso Luso-Brasileiro de Filosofia, Braga, 1982, pp. 543-548.

Pedro Calafate


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